Publicado em 14 de agosto de 2012
Tags: ECA nas escolas
No Brasil, o Projeto de Lei número 2.654/2003 tem por objetivo proibir os castigos físicos ou tratamentos cruéis ou degradantes na educação de crianças e adolescentes. Foi apresentado à Câmara dos Deputados em 2003 pela Deputada Maria do Rosário, PT-RS. Esse tema foi proposto, originalmente, pela Organização das Nações Unidas em decorrência da Convenção Internacional dos Direitos da Criança, aprovada em 20 de novembro de 1989. A imprensa apelidou esse projeto, chamando-o de “Lei da Palmada”.
Esse projeto consiste nas seguintes mudanças:
Art. 1º – São acrescentados à Lei 8069, de 13/07/1990, os seguintes artigos:
Art. 18A – A criança e o adolescente têm direito a não serem submetidos a qualquer forma de punição corporal, mediante a adoção de castigos moderados ou imoderados, sob a alegação de quaisquer propósitos, no lar, na escola, em instituição de atendimento público ou privado ou em locais públicos.
Parágrafo único – Para efeito deste artigo será conferida especial proteção à situação de vulnerabilidade à violência que a criança e o adolescente possam sofrer em conseqüência, entre outras, de sua raça, etnia, gênero ou situação sócio-econômica.
Art. 18B – Verificada a hipótese de punição corporal em face de criança ou adolescente, sob a alegação de quaisquer propósitos, ainda que pedagógicos, os pais, professores ou responsáveis ficarão sujeitos às medidas previstas no artigo 129, incisos I, III, IV e VI desta lei, sem prejuízo de outras sanções cabíveis.
Art. 18 D – Cabe ao Estado, com a participação da sociedade:
I. Estimular ações educativas continuadas destinadas a conscientizar o público sobre a ilicitude do uso da violência contra criança e adolescente, ainda que sob a alegação de propósitos pedagógicos;
II.Divulgar instrumentos nacionais e internacionais de proteção dos direitos da criança e do adolescente;
III.Promover reformas curriculares, com vistas a introduzir disciplinas voltadas à proteção dos direitos da criança e do adolescente, nos termos dos artigos 27 e 35, da Lei 9394, de 20/12/1996 e do artigo 1º da Lei 5692, de 11/08/1971, ou a introduzir no currículo do ensino básico e médio um tema transversal referente aos direitos da criança, nos moldes dos Parâmetros Curriculares Nacionais.
Art. 2º – O artigo 1634 da Lei 10.406, de 10/01/2002 (novo Código Civil), passa a ter seguinte redação:
“Art. 1634 – Compete aos pais, quanto à pessoa dos filhos menores:
VII. Exigir, sem o uso de força física, moderada ou imoderada, que lhes prestem obediência, respeito e os serviços próprios de sua idade e condição.
Art. 3º – Esta lei entrará em vigor na data de sua publicação.
A lei da Palmada gerou muita polêmica em vários setores da sociedade brasileira devido ao costume arraigado, aceitação cultural, do uso de castigos físicos a crianças e adolescentes. Essa mentalidade decorre da defesa de um poder familiar e da citação bíblica ao “uso da vara” na educação, fundamentada no Velho Testamento: “Não retires a disciplina da criança; pois se a fustigares com a vara, nem por isso morrerá.” (Provérbios 23:13). Em contraposição, têm-se aqueles que argumentam que esse projeto diz respeito única e exclusivamente à proibição da violência contra a criança.
No Brasil, antes da chegada dos portugueses, os índios não tinham o costume de castigar fisicamente às crianças. Vários são os relatos de padres no início da colonização, os quais revelam que, entre os indígenas, nem o pai nem a mãe agrediam seus filhos. Essa forma de disciplinar as crianças foi introduzida no Brasil pelos portugueses, jesuítas e capuchinhos.
Esse assunto começou a ser discutido na década de 30 por educadores, psicólogos e psiquiatras na Suécia. Logo após a Segunda Guerra Mundial, fortaleceram-se os debates acerca dos efeitos do uso da violência contra as crianças. Nessa época os professores usavam a punição corporal para manter a ordem nas escolas. Somente depois de inúmeras discussões essa prática foi proibida nas instituições de ensino em 1958.
A Suécia foi o primeiro país a adotar uma lei contra o uso de castigos corporais em crianças e adolescentes, em 1979. Em seguida vieram a Áustria, Dinamarca, Noruega e Alemanha. Atualmente 30 países coíbem essa prática:
Alemanha(2000); Áustria(1989);Bulgária(2000); Chipre(1994); CostaRica(2008);Croácia(1999); Dinamarca(1997); Espanha(2007);Finlândia(1983); Grécia(2006);Hungria(2005); Islândia(2003); Israel(2000); Letónia (1998);Listenstaine(2008); Luxemburgo(2008); Noruega(1987); NovaZelândia(2007);Polônia(2010); Portugal(2007); RepúblicadeMoldávia(2008); Romênia(2004);
Suécia(1979); Tunísia(2010); Ucrânia(2004); Uruguai(2007); Venezuela(2007); Itália (2006)*; Nepal (2002)*.
Deve-se evidenciar que a “Lei da Palmada” retomou dilemas históricos do Direito no que se trata de uma intervenção indevida do Estado na vida familiar e aos limites da legislação. O Professor da Faculdade de Direito da USP, Alysson Leandro Mascaro, defende essa lei com os seguintes argumentos:
“Toda vez que o direito toca em questões que incomodam os costumes arraigados, levanta-se uma polêmica sobre os limites da legislação em face da cultura e das práticas socialmente estabelecidas. Alguns consideram que o direito não pode interferir em questões íntimas da relação familiar, como a educação que os pais dão para os filhos. Para um certo senso médio estabelecido atualmente, é normal e mesmo justo algum ato de violência corporal em benefício da educação das crianças. Pelo mesmo senso comum, não é ruim que o filho comece a trabalhar ainda criança e, a julgar por uma determinada opinião pública, a penalização de adolescentes deve ser aceita. Reforçando esses argumentos está até mesmo a tradição. Os atuais pais assim foram educados pelos seus pais. Mas, em todos esses casos, o direito contemporâneo tem se insurgido contra o senso comum: o Estatuto da Criança e do Adolescente e as normas jurídicas correlatas ao tema claramente avançam em relação à opinião média.
Não há nada de juridicamente insólito em tal avanço. O direito nunca se constitui como exata expressão da opinião média. O Estado, por meio do Poder Legislativo, embora espelhe um horizonte político da sociedade ao momento da escolha dos representantes, recebe do povo, dentro de determinadas balizas normativas, um poder soberano de legislar, e isso a favor ou mesmo contra o senso comum. Vejamos a história dos últimos séculos: o direito nas sociedades contemporâneas se estabeleceu contra muitas relações sociais arraigadas. No campo político, a tradição e a cultura eram absolutistas, e o direito organizou a moderna democracia. No campo penal, o direito é contra a lei de talião e proíbe a pena de morte, e talvez a vontade histórica direta do povo não fosse redundar, por si só, em tais normativas estatais. Mas também se dá o inverso: a multidão de despossuídos dos meios de produção encontra no direito uma barreira contra a sua libertação e sua auto-afirmação. O capitalismo se estrutura também por meio das normas jurídicas, garantido pela defesa estatal da propriedade privada. A fome de muitos, na história, foi legitimada juridicamente. E da mesma maneira como o direito não se afirmou como uma opinião média do povo no plano econômico, também assim não se limita no campo dos costumes sociais.
O Estado perpassa todos os recônditos da vida social contemporânea. Ao pensamento conservador, quando se trata da proteção ao capital, o direito deve ser tido como sagrado. Mas se o direito avança no plano político, econômico ou social, deve então ser contido. Trata-se de uma contradição no uso do direito. O discurso que quer manter a violência contra a criança e o adolescente, sob o argumento de que os costumes sociais assim o são, permitiria dizer que anos a fio de luta libertária do povo, quando contra a exploração econômica e política, fariam um costume válido, ainda que distinto das proibições jurídicas estatais. Mas isso não se afirma. O conservadorismo se apóia nas leis, desde que elas confirmem a conservação: a hipocrisia do pensamento jurídico variável conforme a ocasião reside no fato de que o papel do direito tem sido aceito para reiterar a reprodução das explorações, mas tem sido rechaçado para a evolução das relações sociais.”
Nesse sentido o filósofo Paulo Ghiraldelli Jr. aduz:
“Talvez num futuro próximo, possamos criar um bom tabu quanto a se levantar a mão contra uma criança nos lares brasileiros e, então, haveremos de até rir desse projeto de lei. Poderemos lê-lo e, então dizer, nossa, veja só, éramos tão bárbaros em 2010 que até tivemos de fazer uma lei para que nós mesmos não batêssemos em nossos filhos. Podemos evoluir de um modo a estranhar essa lei de hoje tanto quanto estranhamos que, no início do século XX, a vacina obrigatória, ministrada pelo Estado, tenha causado uma verdadeira revolta, uma rebelião de rua até com conotação política.”
De acordo com o Manual para sensibilização de pais, mães e cuidadores de crianças publicado pela Pro mundo, Organização Não Governamental (ONG), pesquisas e a experiência prática mostram que entre os possíveis efeitos dos castigos físicos e humilhantes, nas crianças, estão:
• comprometem a sua auto-estima, gerando um sentimento de pouca valia e expectativas negativas ao seu próprio respeito.
• ensina-lhes a serem vítimas. Ao contrário de uma crença bastante disseminada de que os castigos fazem as crianças “mais fortes” porque as “prepara para a vida”, sabemos que não apenas não as tornam mais fortes, mas as tornam mais vulneráveis a converterem-se repetidamente em vitimas em diferentes situações e relações.
• interferem em seu processo de aprendizagem e no desenvolvimento de sua inteligência, seus sentidos e emoções.
• sentem solidão, tristeza e abandono.
• incorporam uma visão negativa das pessoas e da sociedade como um lugar ameaçador ao seu modo de ver a vida.
• criam uma barreira que impede ou dificulta a comunicação com seus pais, mães ou cuidadores e prejudica os vínculos emocionais estabelecidos entre eles.
• fazem sentir raiva e vontade de fugir de casa.
• produzem mais violência. Ensinam que a violência é um modo adequado de se resolver os problemas e conflitos.
• podem apresentar dificuldade de integração social.
• não aprendem a cooperar com as figuras de autoridade, aprendem somente a obedecer às normas ou a transgredi-las.
Ainda de acordo com tal ONG,depoimentos de crianças sobre o que pensam e sentem sobre os castigos que sofrem:
“Realmente gostaria de querer bem meus pais, mas não posso. eles me batem muito.” (Menino, Camarões).
“Não é justo porque nascemos para ser amados e felizes e não para que nos agridam.” (Menina, Costa Rica).
“Os adultos batem nas crianças, mas por que as crianças não batem nos adultos? Porque eles são maiores (grandes) e nós somos pequenos.” (Menina, Irlanda do Norte).
“Não gosto muito do meu pai não, porque ele adora me bater. Eu era a preferida para apanhar dele.” (Criança brasileira, contexto rural).
“Eu acho que os pais devem ter paciência com os filhos e não bater logo, e conversar com eles é melhor do que espancar, esta pode ser uma maneira de ensinar o melhor para não ensinar o caminho da maldade.” (Criança mexicana, contexto rural).
Rachel Niskier, coordenadora de campanhas da Sociedade Brasileira de Pediatria, afirma não conhecer nenhuma pesquisa, estudo ou publicação que tenha, até hoje, provado que bater educa. “O que bater faz? Seja ‘palmadinha’, beliscão ou surra, atemoriza a criança. Provoca medo e raiva. Naquele momento ela pára porque ela se sente menor, mais fraca”.
Em sentido contrário, Denilson Cardoso de Araújo, serventuário do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro e autor da obra “ECA PARA FAZER ECO – Crônicas e Estudos sobre a Lei 8.069/90 (Estatuto da Criança e do Adolescente)”, reitera:
“(…) saindo a Lei da Palmada, se agravará a situação de filhos malcriados que se tornam alunos indisciplinados que passam a violentos, e enlouquecem escolas. Da Áustria, que instituiu antes lei similar, vem o alerta. O psiquiatra alemão Michael Winterhoff visitou o exasperado Sindicato dos Professores de Viena e concluiu, a um jornal austríaco que crianças não respeitam professores, não tem noção nas conseqüências de seus atos, por isso brigam pelos corredores, sendo necessário regras de educação mais severas, a partir do lar. (…). Da indisciplina e violência escolar para a o ato infracional é um pulo. Se abolida a necessária palmada parental, nos restará aguardar, então, a dura educação dos cassetetes policiais. Mais produtivo seria fazer uma Lei do Almoço Dominical, que ressuscitasse a finada cerimônia familiar tão educativa e saudável.”
Além dessas diversas posições extremistas, IGNEZ MARTINS TOLLINI – Doutora em Educação pela Universidade de Londres, professora da Faculdade de Educação daUnB e autora do livro Estado e Educação Fundamental, pondera:
““Nos anos 60, um pediatra americano, doutor Benjamin Spock, lançava um livro ‘‘bíblia’’ para a educação das crianças da época. Nele, o médico defendia a educação da ‘‘liberdade com responsabilidade’’. Foi uma surpresa quando, na década seguinte, o próprio dr. Spock confessou sua tristeza ao constatar a má interpretação dos conselhos de seu livro. Lamentava que pais e mestres tivessem entendido ser correto não contrariar as crianças e adolescentes. Disse, também, não haver condenado a palmada ou o castigo bem dados. Para ele, a geração educada sem disciplina e responsabilidade tinha se tornado apática. Referia-se aos jovens hippies e sua nova cultura esvaziada dos valores da cultura estabelecida — o establishment —, na sociedade americana.
Hoje, 30 anos depois, tudo indica que não é um mal-entendido que motiva a anunciada declaração da psicóloga brasileira. É mais do que isso. As verdadeiras razões não são difíceis de serem verificadas. Se no passado os extremos da severidade desvirtuaram o sentido de disciplina na educação dos jovens, hoje os extremos da condescendência, ou a omissão, desvirtuaram o sentido da dedicação e do amor. O resultado desses extremos talvez explique os eventos criminosos ocorridos recentemente nas famílias e na sociedade, tendo jovens como protagonistas.
O empenho de educadores e psicólogos em desvendar essa tragédia social é justo e necessário. Nota-se que os jovens estão pedindo atenção, direção e mesmo um ‘‘não’’ de seus pais e mestres. No entanto, freqüentemente, encontram a indiferença e a ausência de orientação. Penso eu que a solução não será nem a volta da disciplina do passado nem a continuação da ‘‘liberalidade’’ do presente. Teremos que encontrar a mistura renovada de disciplina e amor tendo como base que o entendimento que disciplina é amor, um amor exigente. ””
Adriana Grossi Dornelas e Jéssica M. V. Coelho
Referências Bibliográficas
· Deputada Maria do Rosário. Disponível em: http://www.conjur.com.br/dl/projeto-lei-2654-deputada-maria-rosario.pdf
· Deputada Teresa Surita. Disponível em: http://www.jornaldocampus.usp.br
· Revista Crescer. Disponível em: http://revistacrescer.globo.com
· End all Corporal Punishment of Children .Diisponívelem: http://www.endcorporalpunishment.org/pages/frame.html.
· Fundabrinq. Disponível em: http://www.fundabrinq.org.br/portal/noticias/ano/2010/agosto/palmada-nalei
· Promundo. Disponível em: http://www.promundo.org.br/wp-content/uploads/2010/02/Promundo-Pub-Fim-dos-Castigos-PORT.pdf
· Secom. UNB. Disponível em: http://www.secom.unb.br/unbcliping/cp030519-06.htm